Quem não
gosta de partido é ditadura. Hora de escolher: ou dar as mãos aos skinheads
neonazistas ou abraçar a tolerância e a democracia
Mário Magalhães nasceu no Rio em 1964. Formou-se em jornalismo na UFRJ.
Trabalhou nos jornais “Folha de S. Paulo”, “O Estado de S. Paulo”, “O Globo” e
“Tribuna da Imprensa”. Recebeu mais de 20 prêmios. É autor da biografia
“Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”.
Como observado segunda-feira na
passeata dos mais de 100 mil, os protestos populares em curso constituem
terreno de ferrenha disputa política entre os próprios manifestantes . O confronto
degringolou ontem, na despedida do outono. No país inteiro, militantes portando
bandeiras, estandartes e símbolos de partidos políticos, centrais sindicais,
entidades estudantis e movimentos sociais foram escorraçados por uma turba
intolerante.
Em São Paulo, os principais
executores dessa modalidade de repressão política foram os skinheads, os
“carecas” neonazistas. Botaram para correr quem vestia camisa vermelha,
rasgaram bandeiras de agremiações e arrancaram faixa do movimento negro. São
racistas e homofóbicos. No Rio, essa turma agride, fere e mata gays.
Na Noite dos Cristais, em 9 de
novembro de 1938, a escória nazista atacou os judeus por toda a Alemanha,
insuflada por Adolf Hitler. No dia 20 de junho de 2013, foi a vez de ativistas
de esquerda serem o alvo, no Brasil.
Não está em debate o mérito do partido
X ou Y, no governo ou na oposição, menos ou mais comportado. Nem se um
sindicato representa dignamente ou não seus filiados. Ou mesmo se os imensos
protestos resultam de força ou fraqueza de uma ou outra sigla _as opiniões são
legítimas sobre todas essas questões. O que se discute é o direito democrático
de seus integrantes participarem das manifestações.
Desde os primeiros atos do Movimento
Passe Livre, duas semanas atrás, os partidos tiveram direito de estar presente.
No Rio, foi assim há quatro dias. Se outros chegaram ontem, é também seu
direito, porque inexiste veto dos organizadores dos protestos, onde se sabe
quem são eles.
Como se disseminou um robusto
sentimento antipartidos, sobretudo na classe média, os neonazistas capitalizam
frustrações e comandam os ataques. É legítimo rejeitar siglas, tomar distância
delas e derrotá-las nas urnas. Impedir sua expressão é mania de ditaduras.
Além de ser irônico que determinadas agremiações, cuja militância foi
decisiva na construção do movimento contra o reajuste das tarifas, sejam agora
reprimidas.
Não deixa de ser curioso: quem
protesta contra algumas covardias policiais agride covardemente quem não
concorda com suas ideias. A faixa “Meu partido é meu país” é tão legítima como
a do partidinho mais mequetrefe. Todos têm direito de se manifestar.
Em 1935, o presidente Getulio Vargas
colocou na ilegalidade uma frente de esquerda, a Aliança Nacional Libertadora.
Com o golpe de 37, instaurando a ditadura do Estado Novo, baniu o centro, a
direita e a extrema direita. Em 47, a Justiça cassou o registro do PCB, e no
ano seguinte seus parlamentares, eleitos pelo voto popular, tiveram os mandatos
cassados.
A ditadura implantada em 1964 aboliu
os partidos do regime democrático restabelecido em 1945-46, inclusive aqueles,
como UDN e PSD, que colaboraram para a deposição do presidente constitucional
João Goulart, cuja base tinha entre outros o PTB e o PSB.
Durante aquele tempo de trevas, a
ditadura descaracterizou o Congresso, impondo cerca de uma centena de cassações
de deputados e senadores do MDB. Triturou a Frente Ampla de Jango, Carlos
Lacerda e Juscelino Kubitschek.
As ditaduras, do Estado Novo à de
1964-85, mataram militantes que batalhavam pelo direito de existência e
expressão de partidos. Eles são mártires da democracia e do país.
A União Nacional dos Estudantes,
outro alvo da malta, teve um presidente, Honestino Guimarães, assassinado pela
ditadura. A ditadura que matou e sumiu com o corpo do líder estudantil, em
1973, impedia a livre organização partidária. Trucidava
quem queria se organizar.
Essa mesma ditadura sofreu uma
derrota dura com a formação da CUT, em 1983. As outras centrais sindicais são
igualmente legais e legítimas, simpatizemos ou não com elas. Em 1979, o
operário Santo Dias foi assassinado com um tiro da polícia. É a memória de
gente como ele que é insultada quando fascistoides proíbem os sindicalistas de
se manifestar. Como no Rio, rasgando seus panfletos.
É impressionante que certos analistas
políticos vibrem com a pancadaria contra bandeiras partidárias, mas não
apresentem uma só restrição às ações neonazistas. Impressiona, mas não
surpreende: eles apoiaram a ditadura, a intolerância está em seu DNA.
Condenável é partido aparelhar
movimentos e protestos, impondo sua agenda particular às reivindicações
coletivas. Isso é partidarismo. Mas a presença de agremiações políticas é uma
tradição democrática, e muito o Brasil deve a elas. Esqueceram que na Campanha
das Diretas (1984) e no Fora, Collor (92) as bandeiras tremulavam nos comícios?
Nos palanques, uniam-se dirigentes de partidos para todos os gostos e muita
gente que não ia com a cara deles, mas estava unida para melhorar o Brasil.
Os que aplaudem a massa reprimindo
militantes, tendo na “vanguarda” neonazistas, têm partido, sim: o Partido da
Intolerância, o Partido do Ódio. Já vimos esse filme.
Os provocadores que espalham a
baderna, fração ultraminoritária das manifestações, não são os militantes
partidários, mas os skinheads, alguns ditos punks e outros ditos anarquistas,
que de anarquistas nada têm. Os militantes partidários não promoveram
vandalismo, mas foram alvo deles _tomar, rasgar e queimar bandeira é ato de
vândalo.
Os protestos em curso, que arrancaram
bravamente a redução das tarifas dos transportes públicos, exibem algumas
características novas. Uma delas é que reúnem no mesmo evento quem, em 1964,
participaria da Marcha da Família, de direita, e em 1968, da passeata dos 100 Mil,
dirigida pela esquerda, contra a ditadura. Daí que o ódio dos neonazistas
encontre ressonância.
Quem não tem legitimidade para
participar dos atos são essas facções que ontem agrediram os militantes
políticos, sindicais, estudantis e sociais. São os herdeiros da Ação
Integralista Brasileira, a tradução tupiniquim para o nazismo de Hitler e o
fascismo de Mussolini, na década de 1930.
É legítimo amar e odiar os agredidos
de ontem. Nada mais natural do que achar que um e outro são oportunistas _o que
não falta no mundo é oportunista. Mas quem não
gosta de partido é ditadura.