Supremo Tapetão Federal
Derrotada nas eleições, a classe
dominante brasileira usou o estratagema habitual: foi remexer nos compêndios do
"Direito" até encontrar casuísmos capazes de preencher as ideias que
lhe faltam nos palanques. Como se diz no esporte, recorreu ao tapetão.
O casuísmo da moda, o domínio do fato,
caiu como uma luva. A critério de juízes, por intermédio dele é possível provar
tudo, ou provar nada. O recurso é também o abrigo dos covardes. No caso do
mensalão, serviu para condenar José Dirceu, embora não houvesse uma única
evidência material quanto à sua participação cabal em delitos. A base da
acusação: como um chefe da Casa Civil desconhecia o que estava acontecendo?
A pergunta seguinte atesta a covardia
do processo: por que então não incluir Lula no rol dos acusados? Qualquer
pessoa letrada percebe ser impossível um presidente da República ignorar um
esquema como teria sido o mensalão.
Mas mexer com Lula, pera aí! Vai que o
presidente decide mobilizar o povo. Pior ainda quando todos sabem que um outro
presidente, o tucano Fernando Henrique Cardoso, assistiu à compra de votos a
céu aberto para garantir a reeleição e nada lhe aconteceu. Por mais não fosse,
que se mantivessem as aparências. Estabeleceu-se então que o domínio do fato
vale para todos, à exceção, por exemplo, de chefes de governo e tucanos
encrencados com licitações trapaceadas.
A saída foi tentar abater os petistas
pelas bordas. E aí foi o espetáculo que se viu. Políticos são acusados de
comprar votos que já estavam garantidos. Ora o processo tinha que ser fatiado,
ora tinha que ser examinado em conjunto; situações iguais resultaram em
punições diferentes, e vice-versa.
Os debates? Quantos momentos
edificantes. Joaquim Barbosa, estrela da companhia, exibiu desenvoltura
midiática inversamente proporcional à capacidade de lembrar datas, fixar penas
coerentes e respeitar o contraditório. Paladino da Justiça, não pensou duas
vezes para mandar um jornalista chafurdar no lixo e tentar desempregar a mulher
do mesmo desafeto. Belo exemplo.
O que virá pela frente é uma incógnita.
Para o PT, ficam algumas lições. Faça o que quiser, apareça em foto com quem
quer que seja, elogie algozes do passado, do presente ou do futuro --o fato é
que o partido nunca será assimilado pelo status quo enquanto tiver suas raízes
identificadas com o povo. Perto dos valores dos escândalos que pululam por aí,
o mensalão não passa de gorjeta e mal daria para comprar um vagão superfaturado
de metrô. Mas como foi obra do PT, cadeia neles.
É a velha história: se uma empregada
pega escondida uma peça de lingerie da patroa para ir a uma festa pobre,
certamente será demitida, quando não encarcerada --mesmo que a tenha devolvido.
Agora, se a amiga da mesma madame levar "por engano" um colar
milionário após um regabofe nos Jardins, certamente será perdoada pelo
esquecimento e presenteada com o mimo.
Nunca morri de admiração por militantes
como José Dirceu, José Genoino e outros tantos. Ao contrário: invariavelmente
tivemos posições diferentes em debates sobre os rumos da luta por
transformações sociais. Penso até que muitas das dificuldades do PT resultam de
decisões equivocadas por eles defendidas. Mas num país onde Paulo Maluf e
Brilhante Ustra estão soltos, enquanto Dirceu e Genoino dormem na cadeia, até
um cego percebe que as coisas estão fora de lugar.
Ricardo Melo,
58, é jornalista. Na Folha, foi editor de "Opinião", editor da
"Primeira Página", editor-adjunto de "Mundo",
secretário-assistente de Redação e produtor-executivo do "TV Folha",
entre outras funções. Atualmente é chefe de Redação do SBT (Sistema Brasileiro
de Televisão). Também foi editor-chefe do "Diário de S. Paulo", do
"Jornal da Band" e do "Jornal da Globo". Na juventude, foi
um dos principais dirigentes do movimento estudantil "Liberdade e
Luta" ("Libelu"), de orientação trotskista.
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